Eu sabia que a única maneira de atravessar da Cisjordânia para a Jordânia na Ponte Hussein era tirando o visto com antecedência, o que fiz quando estava em Ramallah. O que eu só vim a saber um dia antes de deixar a Palestina era que eu não poderia atravessar a ponte de bicicleta. Essa é uma zona militar, com uma área de fronteira minada, onde a travessia é permitida somente para veículos.
Então coloquei minha bicicleta em um ônibus, enfrentei todos os procedimentos burocráticos (o que me tomou cerca de duas horas) e do terminal da Jordânia, depois da ponte, comecei minha maratona para chegar a Amã. Foi realmente uma pedalada dura, deixei o Vale do Jordão a cerca de 250m abaixo do nível do mar e tive que subir para os 1000 metros de altitude de Amã.
Em Amã eu tinha gente esperando por mim. Foi um arranjo de um amigo meu de Amsterdam. Eles eram mais brasileiros do que jordanianos, e muito gente boa, o que mais vou lembrar de Amã. Dormi quatro noites lá, visitei alguns pontos turísticos e gastei algum tempo com questões da minha viagem.
Deixando Amã havia duas opções para seguir rumo ao sul, uma seria a mais fácil, pedalar pela estrada plana do Mar Morto, e a outra seria a mais interessante, mas que implicava enfrentar uma área montanhosa com vales e ascensões bem difíceis. Eu escolhi a mais interessante, e devo dizer: nenhum arrependimento! Foi difícil, mas valeu a pena, uma paisagem incrível por todo o caminho .
Minha primeira parada foi em Al Mathlutha, ao lado do Wadi Mujib, um vale que eu iria enfrentar no dia seguinte. Lá dormi na casa de uma família jordaniana, o homem era um amigo do meu novo amigo de Amã .
No dia seguinte atravessei o vale, que era enorme e bem impressionante, com uma vista incrível. Não há nada mais fácil do que a descida, eu acho que fiz em menos de 30 minutos, mas para subir até o outro lado é uma outra história, levei mais de três horas, com mais de 10 paradas para descansar.
Daí pedalei mais 40 km e cheguei a Al Karak, onde dormi duas noites na casa de uma família alemã, também arranjado pelo meu amigo de Amã. Lá visitei o Castelo Kerak, um grande castelo do tempo das cruzadas.
Naquela região havia algo que estava me deixando louco, era a reação das crianças à minha bicicleta, ou pelo menos das crianças difíceis. Assim que eles me viam começavam a tocar pedras. O que para eles parecia algo divertido e nenhum pouco errado. E mesmo quando eles me pediam para parar, nós falávamos sobre o Brasil, sobre futebol e jogadores de futebol, mas assim que eu estava saindo, eu podia ver no espelho da bicicleta eles se abaixando para pegar pedras.
Eu estava realmente indignado com aquilo. Eu sempre gostei de cumprimentar as crianças por todos os lugares onde passei, parando quando possível ou pelo menos acenando para elas, mas aquilo estava me fazendo sentir muito mal, eu já não parava mais, pedalava rápido e ignorando seus chamados, e de alguma forma, com certo medo desses "monstrinhos".
Até que cheguei a uma área meio deserta e vi em uma vila pobre um bando de meninos jogando futebol. Minha primeira reação foi algo como: se eu pedalar mais rápido é possível que eles não me vejam. Mas dai pensei que isso poderia ser uma boa oportunidade para curar minha nova "criançafobia"
E foi realmente um grande remédio. Aqueles não eram atiradores de pedras, mas meninos inocentes que me deram um belo presente naquela tarde. Eles eram bem pobres, muitos deles descalços, jogando em um campo de poeira com uma bola feita de meias. Aqueles eram meninos jordanianos, aqueles eram meninos brasileiros, aqueles eram meninos do mundo, que conseguem na magia de um campo de futebol esquecer a dura realidade da vida e por um momento se ver como um Messi, um Cristiano Ronaldo, um Neymar.
No início eles me viram parar minha bicicleta com surpresa e curiosidade, depois de algum tempo eu já era um deles. O número de meninos dobrou, todos eles muito admirados com a minha bicicleta e o fato de eu ser do Brasil. Eu sou um baita de um perna de pau, mas descobri que melhoro bastante com bolas de meias.
Apesar da poeira, joguei com eles por um tempo e sempre gritando coisas como: "vamos Messi", "muito bom Ronaldo" , "essa foi incrível Barcelona" eles adoravam.
Eu não mudei suas vidas, mas dei-lhes o pouco que eu tinha, o que para um menino que vive no meio do nada, com essa realidade de vida, é algo para lembrar por algum tempo.
De lá pedalei por mais duas horas, eu ainda estava longe da próxima cidade, então comecei a pensar em um lugar para acampar .
O povo da Jordânia é muito gentil, as pessoas realmente gostam de mostrar uma de suas melhores marcas: a hospitalidade. Muitas vezes pedalando aqui eu parava para pedir água, as pessoas me davam água, em seguida me convidavam para descansar e tomar um chá, dai tinha uma refeição e às vezes até dormia lá.
Naquele dia, era hora de conferir a hospitalidade dos beduínos, eu ouvi dizer que eles eram pessoas muito agradáveis, mas não tinha tido a oportunidade de confirmar isso. Agora a oportunidade tinha chegado. Saí da estrada e me dirigi a um acampamento beduíno onde os cachorros imediatamente anunciaram minha chegada.
Lá eu tive mais uma prova de que os pobres são os que têm sempre mais a oferecer, foi incrível como eles ficaram felizes por me terem lá. Nós conversamos e rimos muito, não me perguntem como, pois eles não falavam muito Inglês. Mas há cinco meses na estrada, não há muitas perguntas que não me tenham sido perguntadas, por isso era necessário apenas uma palavra para tentar adivinhar o que eles estavam tentando dizer ou perguntar, o que com gestos eram respondidos.
Eles criam cabras, e quando elas ja tem cerca de um ano são vendidas na cidade. Durante o Verão os beduínos vivem nas montanhas, quando começa a esfriar eles mudam o acampamento para a região do Mar Morto.
Comemos uma saborosa refeição, uma espécie de masa com carne, dividindo a mesma vasilha. Eu estava preparado para comer com a mão, como eles fazem, mas o vasilha foi colocada no chão já com uma colher. Não demorou muito tempo para saber para quem era a colher.
Pedalei mais dois dias até chegar em Wadi Musa, para visitar Petra. Como eu não tinha nenhum lugar para dormir, o meu plano era deixar a bicicleta na casa de alguém durante o dia, visitar Petra e pegar de volta à noite e encontrar um lugar para acampar. Quando cheguei a Wad Musa Perguntei a um homem se eu poderia deixar minha bicicleta em sua casa, ele concordou. Deixei tudo lá e fui visitar Petra.
Quando voltei à noite, o homem me convidou para sentar com ele e seus filhos no jardim e tomar um pouco de chá, ele era uma pessoa muito agradável para conversar. Após o chá, ele me serviu o jantar, eles já haviam comido. Com tanta bondade pensei que ele facilmente me permitiria acampar no jardim. Mas para minha surpresa, ele disse que era o dono de um hotel na cidade e tinha também um prédio muito próximo à sua casa, uma espécie de hotel também, mas onde as pessoas moram nos quartos. Ele deu um telefonema e disse que eu podia dormir lá. Caminhei com minha bicicleta uns duzentos metros e cheguei ao lugar onde dormi duas noites.
Durante dois dias, caminhei pela fantástica Petra, admirando o grande tesouro com que o povo Nabateu presenteou o mundo. Uma incrível cidade esculpida em rocha sólida, que depois de perder sua glória caiu em ruínas e ficou por mais de 500 anos completamente perdida do Ocidente.
De Petra segui para Aqaba, acampei por duas vezes em Ar-Rashdiyya. De lá até Aqaba foi a melhor coisa que um ciclista pode querer: sempre ladeira abaixo. Lá tive um novo recorde de velocidade para esta viagem : 67 km/h .
Em Aqaba tive uma experiência incrível: mergulhar pela primeira vez. Era mais um presente especial que esta viagem me proporcionava. Foi como entrar em um novo mundo, eu curti cada segundo.
O rei Abdullah II também está em Aqaba por esses dias, por conta de uma celebração muçulmana. Aqui na Jordânia, a monarquia tem uma grande diferença da Europa, o rei tem um considerável poder e desempenha um papel importante na vida política do país. Eu vi a imagem do rei por todas os lugares em que pedalei na Jordânia, ele é altamente respeitado e admirado pelo povo.
Hoje termino minha passagem pela Jordânia e pelo Oriente Médio, mas é claro com a esperança de voltar algum dia. Em algumas horas estarei pegando o barco para o Egito, o único país que visitarei na África.
Então vamos nessa..